terça-feira, 21 de março de 2006

POESIA, POETAS, DIA, O'NEIL, MUNDIAL, SARCASMO E OUTRAS COISAS QUE TAIS

"PERICLITAM OS GRILOS"

Periclitam os grilos:
a noite é nada.
Quem tem filhos tem cadilhos.
(Que quadra tão bem rimada!)

Não espere, leitor, que eu diga:
«Debaixo daquela arcada...»
Não venho fazer intriga:
versejo só - e mais nada.

Assim o terceiro verso
desta tirada
(reparou que é um provérbio?)
não significa nada.

Se a noite é nada e os grilos
não estão de asa parada,
não vou puxar, só por isso,
o fio à sua meada,

leitor que me pede a história
que já trás engatilhada,
leitor que não se habitua
a que não aconteça nada

em poesia que comece
como esta foi começada
e acabe como esta
vai ser agora acabada...

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SENTENÇAS DELIRANTES DUM POETA PARA SI PRÓPRIO EM TEMPO DE CABEÇAS PENSANTES

1
Não te ataques com os atacadores dos outros.

Deixa a cada sapato a sua marcha e a sua direcção.
O mesmo deves fazer com os açaimos.

E com os botões.

2
Não te candidates, nem te demitas. Assiste.
Mas não penses que vais rir impunemente a sessão inteira.
Em todo o caso fica o mais perto possível da coxia.

3
Tira as rodas ao peixe congelado,
mas sempre na tua mão.

Depois, faz um berreiro.
Quando tiveres bastante gente à tua volta,
descongela a posta e oferece um bocado a cada um.

4
Não te arrimes tanto à ideia de que haverá sempre
um caixote com serradura à tua espera.
Pode haver. Se houver, melhor...

Esta deve ser a tua filosofia.

5
Tudo tem os seus trâmites, meu filho!
Não faças brincos de cerejas
sem te darem, primeiro, as orelhas.

Era bom que esta fosse, de facto, a tua filosofia.

6
Perguntas-me o que deves fazer com a pedra que
te puseram em cima da cabeça?
Não penses no que fazer com. Cuida no que fazer da.

É provável que te sintas logo muito melhor.

Sai, então, de baixo da pedra.

7
Onde houver obras públicas não deponhas a tua obra.
Poderias atrapalhar os trabalhos.
Os de pedra sobre pedra, entenda-se.

Mas dá sempre um «Bom dia!» ao pessoal do estaleiro.
Uma palavra é, às vezes, a melhor argamassa.

8
Deves praticar os jogos de palavras, mas sempre
com a modéstia do cientista que enxertou em si mesmo
a perna da rã, e que enquanto não coaxa, coxeia.
Oxalá o consigas!

9
Tens um glorioso passado futurível,
mas não fiques de colher suspensa,
que a sopa arrefece.

10
Se tiveres de arranjar um nome para uma personagem
de tua criação, nunca escolhas o de Fradique Mendes.
A criação literária não frequenta o guarda-roupa,
muito menos quando a roupa tem gente dentro.

11
Resume todas estas sentenças delirantes numa única
sentença:
Um escritor deve poder mostrar sempre a língua portuguesa.

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"APROVEITANDO UMA ABERTA"

«Ó virgens que passais ao sol-poente»
com esses filhos-familia
pensai, primeiro, na mobilia,
que é mais prudente.

Sim, que essa qualidade,
tão bem reconstituída,
nem sempre, revirgens, há-de
proporcionar-vos a vida

que levais.
Se um tolo nunca vem só,
qundo não vem, não vem mais
ou vem, digamos, por dó...

E o dó dói como um soco,
até mesmo quando parte
de um tolo que a vossa arte
promoveu de tolo a louco.

Eu quando digo mobília,
digo lar, digo família
e aquela espiada fresta,
aberta, patente, honesta,

retrato oval da virtude,
consoladora do triste,
remanso, beatitude
para o colérico em riste.

Assim, sim, virgens sensatas!
(Nos telhados só as gatas...)
Pensai antes na mobília,
honestas mães de família,
e aceitai respeitos mil
do vosso

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"QUE VERGONHA RAPAZES"

Que vergonha rapazes! Nós pràqui,
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no «diz que»
e a desnalgar a fêmea («Vist'? Viii!»)

Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar a quarta invasão francesa.

Desejo recalcado, com certeza...
Mas logo desço à rua, encontro o Roque
(«O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!»)
e desabafo: - Ó Roque, com franqueza:

Você nunca quis ver outros países?
- Bem queria, Sr O'Neill! E...as varizes?

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"DIVERTIMENTO COM SINAIS ORTOGRÁFICOS"

...
Em aberto, em suspenso
Fica tudo o que digo.
E também o que faço é reticente...
:
Introduzimos, por vezes,
Frases nada agradáveis...
.
Depois de mim maiúscula
Ou espaço em branco
Contra o qual defendo os textos
,
Quando estou mal disposta
(E estou-o muitas vezes...)
Mudo o sentido às frases,
Complico tudo...
!
Não abuses de mim!
?
Serás capaz de responder a tudo o que pergunto?
( )
Quem nos dera bem juntos
Sem grandes apartes metidos entre nós!
^
Dou guarida e afecto
A vogal que procure um tecto.

Alexandre O'Neil

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Arquivado em: Poesia

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