sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

DESASSOSSEGANDO

Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já o não tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada. Não tenho esperanças nem saudades. Conhecendo o que tem sido a minha vida até hoje - tantas vezes e em tanto o contrário do que eu a desejara -, que posso presumir da minha vida de amanhã senão que será o que não presumo, o que não quero, o que me acontece de fora, até através da minha vontade? Nem tenho nada no meu passado que relembre com o desejo inútil de o repetir. Nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim. O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto.

Breve sombra escura de uma árvore citadina, leve som de água caindo no tanque triste, verde da relva regular - jardim público ao quase crepúsculo -, sois, neste momento, o universo inteiro para mim, porque sois o conteúdo pleno da minha sensação consciente. Não quero mais da vida do que senti-la perder-se nestas tardes imprevistas, ao som de crianças alheias que brincam nestes jardins engradados pela melancolia das ruas que os cercam, e copados, para além dos ramos altos das árvores, pelo céu velho onde as estrelas recomeçam.

in Livro do Desassossego de Fernando Pessoa, composto por Bernardo Soares, Ajudante de Guarda-livros na cidade de Lisboa.

2 comentários:

  1. Xena16:11

    Não poderia deixar de comentar este excerto do "Livro do Desassossego", não por ser uma referência indiscutível da nossa literatura, mas por ser um imiscuir da realidade intemporal de uma vida (ou vidas) insatisfeita, de um passado vivido num presente e perspectivando um não futuro.
    Pessoa não escrevia sobre si, escrevia sobre os outros que nele mesmo se manifestavam numa constante luta de sobrevivência pelo seu “eu” verdadeiro. Usou o passado, viveu o presente e abusou do futuro. Não foi um, foi muitos, como muitos seriam os comentarias a fazer acerca deste fragmento.
    Bonito momento, obrigada por nos relembrar este Ajudante de Guarda-livros na cidade de Lisboa que foi Bernardo Soares.

    Xena

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  2. "(...) como muitos seriam os comentários a fazer acerca deste fragmento."

    Cara Xena, pois que hajam muitos comentários, sobre este fragmento ou sobre qualquer outro assunto.

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