segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Ora Eça II

"O riso é a mais útil forma da crítica, porque é a mais acessível à multidão. O riso dirige-se não ao letrado e ao filósofo, mas à massa, ao imenso público anónimo. É por isso que hoje é tão útil como irreverente rir das ideias do passado: a multidão não se ocupa de ideias, ocupa-se das fórmulas visíveis, convencionais das ideias. Por exemplo: o povo em Portugal, nas províncias, não é católico - é padrista: que sabe ele da moral do cristianismo? da teologia? do ultramontanismo? Sabe do santo de barro que tem em casa, e do cura que está na igreja."
- in Carta a Joaquim de Araújo, 25 de Fevereiro de 1878

"É o grande dever do jornalismo fazer conhecer o estado das coisas públicas, ensinar ao povo os seus direitos e as garantias da sua segurança, estar atento às atitudes que toma a política estrangeira, protestar com justa violência contra os atos culposos, frouxos, nocivos, velar pelo poder interior da pátria, pela grandeza moral, intelectual e material em presença de outras nações, pelo progresso que fazem os espíritos, pela conservação da justiça, pelo respeito do direito, da família, do trabalho, pelo melhoramento das classes infelizes."
- in "O Distrito de Évora", 6 de Janeiro de 1867 (nº1)

“É extraordinário! Neste abençoado país todos os políticos têm «imenso talento». A oposição confessa sempre que os ministros, que ela cobre de injúrias, tem, à parte os disparates que fazem, um «talento de primeira ordem»! Por outro lado a maioria admite que a oposição, a quem ela constantemente recrimina pelos disparates que fez, está cheia de «robustíssimos talentos»! De resto todo o mundo concorda que o país é uma choldra. E resulta portanto este facto supracómico: um país governado «com imenso talento», que é de todos na Europa, segundo o consenso unânime, o mais estupidamente governado! Eu proponho isto, a ver: que, como os talentos sempre falham, se experimentem uma vez os imbecis!”
- in Os Maias

“Ega, em suma, concordava. Do que ele principalmente se convencera, nesses estreitos anos de vida, era da inutilidade de todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na Terra – porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em desilusão e poeira.

-Se me dissessem que ali em baixo estava uma fortuna como a dos Rothschilds ou a coroa imperial de Carlos V, à minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava o passo…Não! Não saía deste passinho lento, prudente, correto, que é o único que se deve ter na vida.

-Nem eu! – Acudiu Carlos com uma convicção decisiva.

E ambos retardaram o passo, descendo para a Rampa de Santos, como se aquele fosse em verdade o caminho da vida, onde eles, certos de só encontrarem ao fim desilusão e poeira, não devessem jamais avançar senão com lentidão e desdém. Já avistavam o Aterro, a sua longa fila de luzes. De repente, Carlos teve um largo gesto de contrariedade:

-Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este apetite! Esqueci-me de mandar fazer hoje, para o jantar, um grande pato de paio com ervilhas.

E agora já era tarde, lembrou Ega. Então, Carlos, até aí esquecido em memórias do passado e sínteses da existência, pareceu ter inesperadamente consciência da noite que caíra, dos candeeiros acesos. A um bico de gás tirou o relógio. Eram seis e um quarto!

-Oh diabo!… E eu que disse ao Vilaça e aos rapazes para estarem no Bragança, pontualmente, às seis! Não aparecer por aí uma tipóia!…

-Espera! – Exclamou Ega – Lá vem um americano, ainda o apanhamos.

-Ainda o apanhamos!

Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:

-Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentámos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma. Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras:

-Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder…

A lanterna vermelha do americano, ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:

-Ainda o apanhamos!

-Ainda o apanhamos!

De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para o apanhar o americano, os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela Rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.”
- in Os Maias

Excertos de obras de José Maria Eça de Queiroz, palavras escritas no Séc. XIX, mas sempre atuais.

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