Mostrar mensagens com a etiqueta Poesia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Poesia. Mostrar todas as mensagens

domingo, 31 de julho de 2022

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO 1915, "MANUCURE"

Na sensação de estar polindo as minhas unhas,

Súbita sensação inexplicável de ternura,

Todo me incluo em Mim – piedosamente.

Entanto eis-me sozinho no Café:

De manhã, como sempre, em bocejos amarelos.

De volta, as mesas apenas – ingratas

E duras, esquinadas na sua desgraciosidade

Boçal, quadrangular e livre-pensadora...

Fora: dia de Maio em luz

E sol – dia brutal, provinciano e democrático

Que os meus olhos delicados, refinados, esguios e citadinos

Não podem tolerar – e apenas forçados

Suportam em náuseas. Toda a minha sensibilidade

Se ofende com este dia que há-de ter cantores

Entre os amigos com quem ando às vezes –

Trigueiros, naturais, de bigodes fartos –

Que escrevem, mas têm partido político

E assistem a congressos republicanos,

Vão às mulheres, gostam de vinho tinto,

De peros ou de sardinhas fritas...


E eu sempre na sensação de polir as minhas unhas

E de as pintar com um verniz parisiense,

Vou-me mais e mais enternecendo

Até chorar por Mim...

Mil cores no Ar, mil vibrações latejantes,

Brumosos planos desviados

Abatendo flechas, listas volúveis, discos flexíveis,

Chegam tenuemente a perfilar-me.

Toda a ternura que eu pudera ter vivido,

Toda a grandeza que eu pudera ter sentido,

Todos os cenários que entretanto Fui...

Eis como, pouco a pouco, se me foca

A obsessão débil dum sorriso

Que espelhos vagos refletiram...

Leve inflexão a sinusar...

Fino arrepio cristalizado...

Inatingível deslocamento...

Veloz faúlha atmosférica...

E tudo, tudo assim me é conduzido no espaço

Por inúmeras intersecções de planos

Múltiplos, livres, resvalantes.

É lá, no grande Espelho de fantasmas

Que ondula e se entregolfa todo o meu passado,

Se desmorona o meu presente,

E o meu futuro é já poeira...

....................................................

Deponho então as minhas limas,

As minhas tesouras, os meus godets de verniz,

Os polidores da minha sensação –

E solto meus olhos a enlouquecerem de Ar!

Oh! poder exaurir tudo quanto nele se incrusta,

Varar a sua Beleza – sem suporte, enfim! –


Cantar o que ele revolve, e amolda, impregna,

Alastra e expande em vibrações:

Subtilizado, sucessivo – perpétuo ao Infinito! ...

Que calotes suspensas entre ogivas de ruínas,

Que triângulos sólidos pelas naves partidos!

Que hélices atrás dum voo vertical!

Que esferas graciosas sucedendo a uma bola de ténis! –

Que loiras oscilações se ri a boca da jogadora...

Que grinaldas vermelhas, que leques, se a dançarina russa,

Meia nua, agita as mãos pintadas da Salomé

Num grande palco a Ouro!

– Que rendas outros bailados!

Ah! mas que inflexões de precipício, estridentes, cegantes,

Que vértices brutais a divergir, a ranger,

Se facas de apache se entrecruzam

Altas madrugadas frias...


E pelas estações e cais de embarque,

Os grandes caixotes acumulados,

As malas, os fardos – pele-mêle...

Tudo inserto em Ar,

Afeiçoado por ele, separado por ele

Em múltiplos interstícios

Por onde eu sinto a minh'Alma a divagar!...



– Ó beleza futurista das mercadorias!



– Serapilheira dos fardos,

Como eu quisera togar-me de Ti!

– Madeira dos caixotes,

Como eu ansiara cravar os dentes em Ti!

E os pregos, as cordas, os aros... –

Mas, acima de tudo, como bailam faiscantes

A meus olhos audazes de beleza,

As inscrições de todos esses fardos –

Negras, vermelhas, azuis ou verdes –

Gritos de actual e Comércio & Indústria

Em trânsito cosmopolita:


Ávido, em sucessão da nova Beleza atmosférica,

O meu olhar coleia sempre em frenesis de absorvê-la

À minha volta. E a que mágicas, em verdade, tudo baldeado

Pelo grande fluido insidioso,

Se volve, de grotesco – célere,

Imponderável, esbelto, leviano...

– Olha as mesas... Eia! Eia!

Lá vão todas no Ar às cabriolas,

Em séries instantâneas de quadrados

Ali – mas já, mais longe, em losangos desviados...

E entregolfam-se as filas indestrinçavelmente,

E misturam-se às mesas as insinuações berrantes

Das bancadas de veludo vermelho

Que, ladeando-o, correm todo o Café...

E, mais alto, em planos oblíquos,

Simbolismos aéreos de heráldicas ténues

Deslumbram os xadrezes dos fundos de palhinha

Das cadeiras que, estremunhadas em seu sono horizontal,

Vá lá, se erguem também na sarabanda...

Meus olhos ungidos de Novo,

Sim! – meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhosSim! – meus olhos futuristas, meus o lhos cu[interseccionistas

Não param de fremir, de sorver e faiscar

Toda a beleza espectral, transferida, sucedânea,

Toda essa Beleza-sem-Suporte,

Desconjuntada, emersa, variável sempre

E livre – em mutações contínuas,

Em insondáveis divergências...


– Quanto à minha chávena banal de porcelana?

Ah, essa esgota-se em curvas gregas de ânfora,

Ascende num vértice de espiras

Que o seu rebordo frisado a ouro emite...



...Dos longos vidros polidos que deitam sobre a rua,

Agora, chegam teorias de vértices hialinos

A latejar cristalizações nevoadas e difusas.

Como um raio de sol atravessa a vitrine maior,

Bailam no espaço a tingi-lo em fantasias,

Laços, grifos, setas, ases – na poeira multicolor –.


APOTEOSE

.....................................................................

Junto de mim ressoa um timbre:

Laivos sonoros!

Era o que faltava na paisagem...

As ondas acústicas ainda mais a subtilizam:

Lá vão! Lá vão! Lá correm ágeis,

Lá se esgueiram gentis, franzinas corças d'Alma...



Pede uma voz um número ao telefone:

Norte – 2, O, 5, 7...

E no Ar eis que se cravam moldes de algarismos:



Mais longe um criado deixa cair uma bandeja...

Não tem fim a maravilha!

Um novo turbilhão de ondas prateadas

Se alarga em ecos circulares, rútilos, farfalhantes

Como água fria a salpicar e a refrescar o ambiente...

– Meus olhos extenuaram de Beleza!

Inefável devaneio penumbroso –

Descem-me as pálpebras vislumbradamente...

............................................................

...Começam-me a lembrar anéis de jade

De certas mãos que um dia possuí –

E ei-Ios, de sortilégio, já enroscando o Ar...

Lembram-me beijos – e sobem

Marchetações a carmim...

Divergem hélices lantejoulares...

Abrem-se cristas, fendem-se gumes...

Pequenos timbres d'ouro se enclavinham...

Alçam-se espiras, travam-se cruzetas...

Quebram-se estrelas, soçobram plumas...

Dorido, para roubar meus olhos à riqueza,

Fincadamente os cerro...


Embalde! Não há defesa:

Zurzem-se planos a meus ouvidos, em catadupas,

Durante a escuridão –

Planos, intervalos, quebras, saltos, declives...

– Ó mágica teatral da atmosfera,

– Ó mágica contemporânea – pois só nós,

Os de Hoje, te dobrámos e fremimos!

....................................................

Eia! Eia!

Singra o tropel das vibrações

Como nunca a esgotar-se em ritmos iriados!

Eu próprio sinto-me ir transmitido pelo ar, aos novelos!

Eia! Eia! Eia!...


(Como tudo é diferente

Irrealizado a gás:

De livres pensadoras, as mesas fluídicas,

Diluídas,

São já como eu católicas, e são como eu monárquicas!...)

.......................................................................................

.......................................................................................

Sereno.

Em minha face assenta-se um estrangeiro

Que desdobra o «Matin».

Meus olhos, já tranquilos de espaço,

Ei-los que, ao entrever de longe os caracteres,

Começam a vibrar

Toda a nova sensibilidade tipográfica

Eh-lá! grosso normando das manchettes em sensação!

Itálico afilado das crónicas diárias!

Corpo-12 romano, instalado, burguês e confortável!

Góticos, cursivos, rondas, inglesas, capitais!

.......................................................................................

Tipo miudinho dos pequenos anúncios!

Meu elzevir de curvas pederastas!...

E os ornamentos tipográficos, as vinhetas,

As grossas tarjas negras,

Os «puzzle» frívolos da pontuação,

Os asteriscos – e as aspas... os acentos...

Eh-lá! Eh-lá! Eh-lá! ...



– Abecedários antigos e modernos,

Gregos, góticos,

Eslavos, árabes, latinos –,

Eia-hô! Eia-hô! Eia-hô!...


(Hip! Hip-lá! nova simpatia onomatopaica,

Rescendente da beleza alfabética pura:

Uu-um... kess-kresss... vliiim... tlin... blong... flong... flack...

Pâ-am-pam! Pam... pam... pum... pum... Hurrah!)


Mas o estrangeiro vira a página,

Lê os telegramas da última-Hora;

Tão leve como a folha do jornal,

Num rodopio de letras,

Todo o mundo repousa em suas mãos!


– Hurrah! por vós, indústria tipográfica!

– Hurrah! por vós, empresas jornalísticas!


Por último desdobra-se a folha dos anúncios. ..

– Ó emotividade zebrante do Reclamo,

– Ó estética futurista – up-to-date das marcas comerciais,

Das firmas e das tabuletas!...



E a esbelta singeleza das firmas, LIMITADA

.......................................................................................

.......................................................................................

Tudo isto, porém, tudo isto, de novo eu refiro ao Ar

Pois toda esta Beleza ondeia lá também:

Números e letras, firmas e cartazes –

Altos-relevos, ornamentação! Palavras em liberdade, sons sem-fio,



Antes de me erguer lembra-me ainda

A maravilha parisiense dos balcões de zinco,

Nos bares... não sei porquê...


– Un vermouth-cassis... Un Pernod à l'eau...

Un amer-citron... une grenadine...

.......................................................................................

.......................................................................................

.......................................................................................


Levanto-me...

– Derrota!

Ao fundo, em maior excesso, há espelhos que refletem

Tudo quanto oscila pelo Ar:

Mais belo através deles,

A mais subtil destaque...

– Ó sonho desprendido, ó luar errado,

Nunca em meus versos poderei cantar,

Como ansiara, até ao espasmo e ao Oiro,

Toda essa Beleza inatingível,

Essa Beleza pura!


Rolo de mim por uma escada abaixo...

Minhas mãos aperreio,

Esqueço-me de todo da ideia de que as pintava...

E os dentes a ranger, os olhos desviados,

Sem chapéu, como um possesso:

Decido-me!


Corro então para a rua aos pinotes e aos gritos:

– Hilá! Hilá! Hilá-hô! Ehl Eh!...

Tum... tum... tum... tum tum tum tum...





Mário de Sá-Carneiro, Poemas Dispersos, Lisboa - Maio de 1915

quarta-feira, 25 de abril de 2012

CONTRA O DESPOTISMO

Sanhudo, inexorável Despotismo
Monstro que em pranto, em sangue a fúria cevas,
Que em mil quadros horríficos te enlevas,
Obra da Iniquidade e do Ateísmo:

Assanhas o danado Fanatismo,
Porque te escore o trono onde te enlevas;
Por que o sol da Verdade envolva em trevas
E sepulte a Razão num denso abismo.

Da sagrada Virtude o colo pisas,
E aos satélites vis da prepotência
De crimes infernais o plano gizas,

Mas, apesar da bárbara insolência,
Reinas só no ext'rior, não tiranizas
Do livre coração a independência.


Soneto de José Maria Barbosa du Bocage.

(A parte do Ateísmo é que enfim...)

terça-feira, 30 de novembro de 2010

HOJE PESSOA, OBVIAMENTE


Fernando Pessoa Stencil in Bairro Alto, Lisboa

"Lisboa com suas casas"

Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores…
À força de diferente, isto é monótono,
Como à força de sentir, isto é monótono,
Como à força de sentir, fico só a pensar.

Se, de noite, deitado mas desperto
Na lucidez inútil de não poder dormir,
Quero imaginar qualquer coisa
E surge sempre outra (porque há sono,
E, porque há sono, um bocado de sonho),
Quero alongar a vista com que imagino
Por grandes palmares fantásticos,
Mas não vejo mais,
Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,
Que Lisboa com suas casas
De várias cores.

Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.
À força de monótono, é diferente.
E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.
Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,
Lisboa com suas casas
De várias cores.

Álvaro de Campos
10 - 5 - 1934


XXVIII

Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.

Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.

Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.

Mas flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.

É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.

Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.

Alberto Caeiro
In O Guardador de Rebanhos

Quando se completam 75 anos sobre a data do desaparecimento físico de Fernando Pessoa...

terça-feira, 9 de novembro de 2010

CLEARLY NON-CAMPOS!

CLEARLY NON-CAMPOS!

Não sei qual é o sentimento, ainda inexpresso,
Que subitamente, como uma sufocação, me aflige
O coração que, de repente,
Entre o que vive, se esquece.
Não sei qual é o sentimento
Que me desvia do caminho,
Que me dá de repente
Um nojo daquilo que seguia,
Uma vontade de nunca chegar a casa,
Um desejo de indefinido,
Um desejo lúcido de indefinido.


s.d.
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

VIVER AMANHÃ POR TER ADIADO HOJE?

PARAGEM. ZONA

Tragam-me esquecimento em travessas!
Quero comer o abandono da vida!
Quero perder o hábito de gritar para dentro.
Arre, já basta! Não sei o quê, mas já basta…
Então viver amanhã, hein?... E o que se faz de hoje?
Viver amanhã por ter adiado hoje?
Comprei por acaso um bilhete para esse espectáculo?
Que gargalhadas daria quem pudesse rir!
E agora aparece o eléctrico — o de que eu estou à espera —
Antes fosse outro… Ter de subir já!
Ninguém me obriga, mas deixá-lo passar porquê?
Só deixando passar todos, e a mim mesmo, e à vida…
Que náusea no estômago real que é a alma consciente!
Que sono bom o ser outra pessoa qualquer…
Já compreendo porque é que as crianças querem ser guarda-freios…
Não, não compreendo nada…
Tarde de azul e ouro, alegria das gentes, olhos claros da vida…

Álvaro de Campos 28 - 5 - 1930

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

MANUCURE (FINALMENTE)

Manucure

Na sensação de estar polindo as minhas unhas,

Súbita sensação inexplicável de ternura,

Todo me incluo em Mim – piedosamente.

Entanto eis-me sozinho no Café:

De manhã, como sempre, em bocejos amarelos.

De volta, as mesas apenas – ingratas

E duras, esquinadas na sua desgraciosidade

Boçal, quadrangular e livre-pensadora...

Fora: dia de Maio em luz

E sol – dia brutal, provinciano e democrático

Que os meus olhos delicados, refinados, esguios e citadinos

Não podem tolerar – e apenas forçados

Suportam em náuseas. Toda a minha sensibilidade

Se ofende com este dia que há-de ter cantores

Entre os amigos com quem ando às vezes –

Trigueiros, naturais, de bigodes fartos –

Que escrevem, mas têm partido político

E assistem a congressos republicanos,

Vão às mulheres, gostam de vinho tinto,

De peros ou de sardinhas fritas...

(..)

Leia o poema completo na Biblioteca AdC.


Finalmente um dos poemas mais geniais do Século XX chega ao Abaixo de Cão.
Trata-se de "Manucure" de Mário de Sá-Carneiro publicado em 1915 e cujos efeitos tipográficos tentei reproduzir o mais fielmente possível. Recorri a várias fontes na Internet e não me venham falar em direitos de autor pois toda a obra do poeta se encontra no Domínio Público.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

E ASPIRO UNICAMENTE À LIBERDADE

Evolução

Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo
tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
O, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paúl, glauco pascigo...

Hoje sou homem, e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, da imensidade...

Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.

1882, Antero de Quental in "Sonetos".
Manuscrito original.

sábado, 21 de março de 2009

TABACARIA NO DIA MUNDIAL

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

(...)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(...)

"Tabacaria" por Álvaro de Campos, 15-1-1928.


Versão integral
no sítio da Wikisource (se não conseguir abrir a ligação clique aqui). Versão para impressão.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

YOUTUBE POÉTICOTELEVISIVO - MÁRIO VIEGAS



Na passada segunda-feira completaram-se 60 anos sobre a data de nascimento de Mário Viegas. Actor, encenador, declamador de génio, deixou um vácuo que tem sido muito difícil de preencher.
Soube popularizar, no sentido mais nobre da palavra, a Poesia e o Teatro recorrendo à televisão. Nunca o seu nível de exigência baixou um milímetro, nunca compactuou com a mediocridade. Por tudo isso soube levar a várias gerações a Arte da Palavra.
Programas como o “Palavras Ditas” ou o “Palavras Vivas” seriam impossíveis de transmitir na TV de hoje, os dejectos televisivos e a boçalidade reinante certamente abafariam por completo tais realizações artísticas.
Para recordar o grande Mário proponho o visionamento desta e desta lista de reprodução com momentos altos do “Palavras Ditas”. Podem sentar-se no sofá que os vídeos vão sendo reproduzidos em sequência.
Os leitores mais novos, bem como os que habitam do outro lado do Atlântico, terão oportunidade de conhecer vários autores portugueses declamados por um dos maiores vultos da cultura lusa do séc. XX.

Tive a sorte de cumprimentar o mestre no final de uma peça, mas só consegui dizer “muito obrigado!”

Nota: na segunda lista de reprodução o poema “A Cena do Ódio” está dividido em dois vídeos e a ordem de emissão está invertida.

PS: bem sei que os vídeos sugeridos (tecnicamente) infringem a Lei dos Direitos de Autor (tens razão Abel), mas promovendo a RTP programas merdosos, como o "Praça da Alegria", só apetece dizer que me estou cagando para os respectivos Copyrights.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

FUI EU?

Não sei quantas almas tenho

por Fernando Pessoa

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : "Fui eu?"
Deus sabe, porque o escreve.

FALTAR-ME-Á SEMPRE QUALQUER COISA

Acordar

Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da Rua do Ouro,
Acordar do Rocio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.

Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.

Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,
Seja

A mulher que chora baixinho
Entre o ruído da multidão em vivas...
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,
Cheio de individualidade para quem repara...
O arcanjo isolado, escultura numa catedral,
Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã,
Tudo isto tende para o mesmo centro,
Busca encontrar-se e fundir-se
Na minha alma.

Eu adoro todas as coisas
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho pela vida um interesse ávido
Que busca compreendê-la sentindo-a muito.
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,
Para aumentar com isso a minha personalidade.

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio
E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma criança a quem a ama beija.
Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras,
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo
Do que as que vi ou verei.
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Dá-me lírios, lírios
E rosas também.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também,
Crisântemos, dálias,
Violetas, e os girassóis
Acima de todas as flores...

Deita-me as mancheias,
Por cima da alma,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Meu coração chora
Na sombra dos parques,
Não tem quem o console
Verdadeiramente,
Excepto a própria sombra dos parques
Entrando-me na alma,
Através do pranto.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Minha dor é velha
Como um frasco de essência cheio de pó.
Minha dor é inútil
Como uma gaiola numa terra onde não há aves,
E minha dor é silenciosa e triste
Como a parte da praia onde o mar não chega.
Chego às janelas
Dos palácios arruinados
E cismo de dentro para fora
Para me consolar do presente.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Mas por mais rosas e lírios que me dês,
Eu nunca acharei que a vida é bastante.
Faltar-me-á sempre qualquer coisa,
Sobrar-me-á sempre de que desejar,
Como um palco deserto.

Por isso, não te importes com o que eu penso,
E muito embora o que eu te peça
Te pareça que não quer dizer nada,
Minha pobre criança tísica,
Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também..

por Álvaro de Campos

domingo, 10 de junho de 2007

LUÍS

Tomou-me vossa vista soberana

Tomou-me vossa vista soberana
Aonde tinha as armas mais à mão,
Por mostrar que quem busca defensão
Contra esses belos olhos, que se engana.

Por ficar da vitória mais ufana,
Deixou-me armar primeiro da razão;
Cuidei de me salvar, mas foi em vão,
Que contra o Céu não vale defensa humana.

Mas porém, se vos tinha prometido
O vosso alto destino esta vitória,
Ser-vos tudo bem pouco está sabido.

Que posto que estivesse apercebido,
Não levais de vencer-me grande glória;
Maior a levo eu de ser vencido.

Luís Vaz de Camões

Com tantas comemorações oficiais, com tanto Plano Tecnológico, com tanta Banda Larga, não arranja o Governo verba para um sítio dedicado a Camões? Será assim tão difícil colocar em linha a obra integral do Poeta?

Arquivado em: Poesia

sexta-feira, 9 de junho de 2006

JACARANDÁS

Sim, o Katraponga tem razão. Faltava Eugénio de Andrade...

DESPEDIDA

Junho chegara ao fim, a magoada
luz dos jacarandás, que me pousava
nos ombros, era agora o que tinha
para repartir contigo,
e um coração desmantelado
que só aos gatos servirá de abrigo.

segunda-feira, 1 de maio de 2006

MAIO

''O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO''

E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
- Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.


Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

mais...


Vinicius de Moraes
in Novos Poemas (II)
in Poesia completa e prosa: "Nossa Senhora de Paris" (1953-1957)
Rio de Janeiro . Nova Aguilar .1998

terça-feira, 25 de abril de 2006

"TANTO SANGUE, TANTA DOR, TANTA ANGÚSTIA, UM DIA - MESMO QUE O TÉDIO DE UM MUNDO FELIZ VOS PERSIGA - NÃO HÃO-DE SER EM VÃO"


"CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA"

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.


(...)


Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia

- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -

não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objeto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
mais...

Lisboa, 25 de Junho de 1959


Jorge de Sena

quinta-feira, 1 de janeiro de 2004

RECEITA DE ANO NOVO

Receita de ano novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo [já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às [carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se [nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou [qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 17 de dezembro de 2003

CORAÇÃO SEM-ABRIGO III

Outros terão
Um lar, quem saiba, amor
...

Outros terão
Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo.
A inteira, negra e fria solidão
Está comigo.

A outros talvez
Há alguma coisa quente, igual, afim
No mundo real. Não chega nunca a vez
Para mim.

"Que importa?"
Digo, mas só Deus sabe que o não creio.
Nem um casual mendigo à minha porta
Sentar-se veio.

"Quem tem de ser?"
Não sofre menos quem o reconhece.
Sofre quem finge desprezar sofrer
Pois não esquece.

Isto até quando?
Só tenho por consolação
Que os olhos se me vão acostumando
À escuridão.

Fernando Pessoa, 13-1-1920.
CORAÇÃO SEM-ABRIGO II

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui --- ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça,
com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado---,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Álvaro de Campos, 15-10-1929
CORAÇÃO SEM-ABRIGO I

Paisagem de chuva

Toda a noite, e pelas horas fora, o chiar da chuva baixou. Toda a noite, comigo entredesperto, a monotonia liquida me insistiu nos vidros. Ora um rasgo de vento, em ar mais alto, açoitava, e a água ondeava de som e passava mãos rápidas pela vidraça; ora com som surdo só fazia sono no exterior morto. A minha alma era a mesma de sempre, entre lençois como entre gente, dolorosamente consciente do mundo. Tardava o dia como a felicidade - àquela hora parecia que também indefinidamente.
Se o dia e a felicidade nunca viessem! Se esperar, ao menos, pudesse nem sequer ter a desilusão de conseguir.
O som casual de um carro tardo, áspero a saltar nas pedras, crescia do fundo da rua, estralejou por debaixo da vidraça, apagava-se para o fundo da rua, para o fundo do vago sono que eu não conseguia de todo. Batia. de quando em quando, uma porta de escada. Às vezes havia um chapinhar liquido de passos, um roçar por si mesmos de vestes molhadas. Uma ou outra vez, quando os passos eram mais, soava alto e atacavam. Depois, o silêncio volvia, com os passos que se apagavam, e a chuva continuava, inumeravelmente.
Nas paredes escuramente visiveis do meu quarto, se eu abria os olhos do sono falso, boiavam fragmentos de sonhos por fazer, vagas luzes, riscos pretos, coisas de nada que trepavam e desciam. Os móveis, maiores do que de dia, manchavam vagamente o absurdo da treva. A porta era indicada por qualquer coisa nem mais branca, nem mais preta do que a noite, mas diferente. Quanto à janela, eu só a ouvia.
Nova, fluida, incerta, a chuva soava. Os momentos tardavam ao som dela. A solidão da minha alma alargava-se, alastrava, invadia o que eu sentia, o que eu queria, o que ia sonhar. Os objectos vagos, participantes, na sombra, da minha insónia, passam a ter lugar e dor na minha desolação.

in ''O Livro do Desassossego'' de Bernardo Soares [Fernado Pessoa]

segunda-feira, 8 de dezembro de 2003

ARY

Poeta Castrado, Não!

Serei tudo o que disserem

por inveja ou negação:

cabeçudo dromedário

fogueira de exibição

teorema corolário

poema de mão em mão

lãzudo publicitário

malabarista cabrão.

Serei tudo o que disserem:

Poeta castrado não!

Os que entendem como eu

as linhas com que me escrevo

reconhecem o que é meu

em tudo quanto lhes devo:

ternura como já disse

sempre que faço um poema;

saudade que se partisse

me alagaria de pena;

e também uma alegria

uma coragem serena

em renegada poesia

quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu

a força que tem um verso

reconhecem o que é seu

quando lhes mostro o reverso:

De fome já não se fala

- é tão vulgar que nos cansa -

mas que dizer de uma bala

num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história

- a morte é branda e letal -

mas que dizer da memória

de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser

o poema dia a dia?

- um bisturi a crescer

nas coxas de uma judia;

um filho que vai nascer

parido por asfixia?!

- Ah não me venham dizer

que é fonética a poesia !

Serei tudo o que disserem

por temor ou negação:

Demagogo mau profeta

falso médico ladrão

prostituta proxeneta

espoleta televisão.

Serei tudo o que disserem:

Poeta castrado, não!


Ary dos Santos

in SANTOS, Ary dos. - Resumo. Lisboa, 1973.
Clique em "Mensagens antigas" para ler mais artigos fantásticos do Arquivo.

Temas

(so)risos (4) 100nada (1) 25 de Abril (5) 4º aniversário (1) 90's (2) actualidade (1) Amália (1) Ambiente (2) Aniversários (16) Ano Novo (6) Arquitectura (1) Arte (2) Astronomia (6) avacalhando (1) Blogosfera (78) boicote AdC (1) borlas (2) burla (1) cantarolando (1) cidadania (4) Ciência (6) Cinema (7) Cinema de Animação (2) classe (1) coisas (1) coisas da vida (5) Como disse? (1) Computadores e Internet (28) Contra a censura (1) contrariado mas voltei (1) corrosões (1) cultura (1) curiosidades (1) dass (1) de férias; mas mesmo assim não se livram de mim (2) Década Nova (1) Democracia (5) depois fica tudo escandalizado com as notas dos exames de português (1) Desporto (3) Dia do Trabalhador (1) Direito ao trabalho (1) ditadores de Esquerda ou de Direita não deixam de ser ditadores (1) é que eu amanhã tenho de ir trabalhar (1) eco (1) Economia (5) efemérides (3) eles andam aí (1) Elis (2) Em bom português se entendem 8 nações (2) em homenagem ao 25 de Abril (1) Em Pequim o Espírito Olímpico morreu (1) escárnio e maldizer (1) Escultura (3) espanta tédio (1) estado do mundo (1) Fado (2) Fernando Pessoa (1) festividades (3) Festividades de Dezembro (2) Filosofia (3) Fotografia (34) fotojornalismo (1) fuck 24 (1) fundamentalismos (1) futebol (1) Futuro hoje (1) ganância (3) gastronomia (1) Geografia (1) Grande Música (46) grátis (1) História (7) inCitações (15) injustiça (1) Internet (4) internet móvel (1) Internet: sítios de excelência (1) intervenção pública (3) inutilidades (7) Jazz (2) jornalismo (1) ladrões (1) Liberdade (7) liberdade de expressão (2) língua portuguesa (4) Lisboa (3) listas (1) Literatura (13) Livro do Desassossego (1) Má-língua (1) mentiras da treta (1) miséria (1) Modernismo (2) MPB (5) Mundo Cão (5) música afro-urbana (1) Música Popular Brasileira (1) Músicas (15) não te cales (2) Navegador Opera (2) ninguém me passa cartão... (1) Noite (1) Nossa língua (1) o lado negro (1) o nosso futuro (1) oportunismo (1) os fins nunca justificam os meios (1) Pandemias (1) paranoia (1) parvoíces (1) pessoal (8) Pintura (171) podem citar-me (3) Poesia (31) política (10) política internacional (2) porque são mesmo o melhor do mundo (2) Portugal (3) Portugal de Abril (4) preciosa privacidade (6) preguiça (1) Programas de navegação (1) quase nove séculos de crise (3) quotidiano (2) resistir (2) resmunguices (7) respeite sempre os direitos de autor (1) Seleção AdC - Internet (1) Selecção AdC - Internet (2) serviço público AdC (1) Sexo (1) so(r)risos (5) Solidariedade (3) Taxa Socas dos Bosques (1) Teatro (1) Tecnologia (1) televisão (1) temos de nos revoltar (1) Terceiro Mundo (20) The Fab Four (1) trauteando (1) Um aperto no coração (1) umbigo (8) UNICEF (1) vai tudo abaixo (2) vaidades (7) vampiros (1) Verdadeiramente Grandes Portugueses (4) vidas (1) vou ali e já venho (1) YouTube (3)