BREVES APONTAMENTOS SOBRE AS ORIGENS DO MODERNO ''CONTRADITÓRIO'', DA CONTEMPORÂNIA AUSÊNCIA DE PRESSÕES E DA IMUNIDADE A ELAS, BEM COMO A GÉNESE DO NEBULOSO E ELÁSTICO ''SEGREDO DE JUSTIÇA''
''--O que pensa Cardoso Pires da...PIDE--
- O seu segundo livro, Histórias de Amor, foi apreendido...
- Um dos contos descrevia a prisão de uma estudante antifascista mas a Censura fingiu ignorar o pormenor. A PIDE é que não: prendeu-me sem mais aquelas...
- Como foi tratado pela PIDE?
- Não me interrogaram, não me deixaram dormir durante três dias e depois puseram-me na rua sem interrogatório, sem nada. Apenas, a privação do sono e algumas provocações. Era um aviso da polícia a um jovem que começava a escrever, nada mais.
- Foi longo o seu conflito com a Censura...
- Em todo o caso, muito menor do que o de alguns escritores. Torga esteve preso não sei quanto tempo por ter escrito Os Bichos. Redol foi proibido de publicar fosse o que fosse durante dois anos... A polícia política e a polícia da escrita trabalhavam de mãos dadas, como aconteceu no meu caso, mas nunca se comprometiam com qualquer declaração documentada. Veja, a PIDE teve-me detido e dessa reclusão não ficou um auto de captura, um interrogatório. Uma semana depois foi a vez de a Censura me chamar por uma contrafé. O director, um major sinuoso que dava pelo nome de David dos Santos, propôs-me que eu fizesse emendas ao texto das Histórias de Amor para lhe levantar a interdição.
- Que emendas?
- Substituir as passagens censuradas, pura e simplesmente. Num livro de Jacinto Baptista * há uma referência a esse episódio com bastante exactidão. Para os censores o que na altura estava em causa já não era o livro, era o jovem escritor que eu era. Era esse principiante que aquele major de merda estava a humilhar convictamente, procurando comprometê-lo ali mesmo, logo à nascença. O próprio facto de eu ter de recusar uma negociação tão suja foi, lembro-me bem, uma segunda humilhação para mim porque uma proposta de colaboracionismo, mesmo que em termos de rotina burocrática, pressupõe que o carrasco tem uma imagem desdenhosa da vítima. Claro que da tentativa de aliciamento não ficou o menor registo, como era costume. Ou, antes, ficou; neste caso ficou, porque o major aliciador insistiu em que eu reconsiderasse e entregou-me o exemplar censurado para que eu o corrigisse. O exemplar censurado, imagine! As anotações, as passagens, as páginas cortadas pelo célebre lápis azul da censura, tudo ali na minha mão!
- Por exemplo ...?
- Por exemplo, a palavra nu cortada logo ao abrir do livro. «O homem estava nu em cima da cama ...» e, zás, o lápis azul atacou logo. Por exemplo, certas expressões do género filho da mãe, dor de corno, catano e outras assim, tudo abaixo, tudo excomungado. A simples referência a Maiakovski, ao Éluard e ao Pessoa (ao Pessoa, veja bem!) levantou prontamente a suspeita do bem-pensante e foi abatida antes que se fizesse tarde, e isto para não falar já das páginas eliminadas por inteiro nem das interrogações e de certos sinais enigmáticos que aparecem à margem doutras. Numa delas está anotado a tinta «Deixar passar?» Como vê, os caprichos da Censura eram largos e insondáveis... e eu tinha-os ali na mão! Desse por onde desse, não estava disposto a perder um testemunho daqueles. Como e de que maneira, não sabia. Por sorte minha, pouco tempo depois houve uma remodelação dos Serviços de Censura e nunca mais devolvi o exemplar. Guardo-o como um apontamento precioso da minha vida de escritor porque é uma comprovação da prepotência e da análise supersticiosa daquilo a que o Salazar chamava a Política do Espírito. Senti a mão da Censura logo ao primeiro texto que publiquei em livro, uma antologia universitária intitulada Bloco. Morte imediata, livro apreendido sem demora porque a polícia da escrita estava atenta aos candidatos a escritor. Os que havia já chegavam e sobravam, para essa praga de inquisidores, o escritor português vivo era a besta inconveniente, o alvo maldito. Mesmo assim, ele não se calava, não desistia de escrever. E os editores publicavam-no, os editores, que imprudência, assumiam esse risco. E os livreiros protegiam-no, faziam malabarismos para lhe venderem o livro clandestinamente se por acaso fosse proibido.''
* Jacinto Baptista, Caminhos para uma Revolução, Ed. Bertrand, Lisboa, 1975.
Cardoso Pires por Cardoso Pires, entrev. de Artur Portela, 1ª edição, Publicações D. Quixote, 1991, 124 p., pp. 33-35
----------------------------------------------
ANOTAÇÕES DA CENSURA PRÉVIA SOBRE ALGUNS FILMES
»''A Terra Treme'', de Luchino Visconti (1948) - ''Paira neste filme uma atmosfera contra a sociedade instituída. (...) O filme constitui um espectáculo inconveniente e altamente perigoso.''
»''Verboten'', de Samuel Fuller (1958) - ''É um filme de baixa propaganda antinazi (...). É um filme de ódio, politicamente inconveniente. É em suma um assunto ultrapassado.''
»''O Acossado'', de Jean Luc Godard (1959) - ''O filme é de todo o ponto inconveniente porque não é mais do que a apresentação de situações à margem da lei e da moralidade.''
»''A Adolescente'', de Luis Buñuel (1960) - ''Trata-se de um filme de Luis Buñuel, conhecido realizador espanhol de formação à esquerda (...). No decorrer da história, muitas vezes aflora um racismo violento de brancos contra pretos (...). O filme seria de aprovar, noutro momento (...). Porém, neste momento em que nos afligem problemas delicados em África, não seria conveniente a aprovação de um filme deste tipo.''
»''O Julgamento de Nuremberga'', de Stanley Kramer (1961). Filme extensamente censurado.
»''A Colina Maldita'', de Sidney Lumet (1965) - "As situações apresentadas neste filme criam um desrespeito completo pela hierarquia militar e até, em certos aspectos, ódio ao exército."
»''Dracula, Prince of Darkness'', de Terence Fisher (1966) - "Trata-se de um filme que pretende fazer crer na existência de vampirismo, em que este aparece ligado com a religião."
»''Oh! What a Lovely War'', de Richard Attenborough (1969) - "Reprovamos o filme pois é um libelo cruel contra a guerra."
»''Zabriskie Point'', de Michelangelo Antonioni (1970) - "Reprovamos o filme: a revolta da juventude nas primeiras partes e a destruição da civilização na última são os motivos determinantes."
----------------------------------------------
ALGUNS DOS DISCOS CENSURADOS DURANTE O ''ESTADO NOVO''
» Adriano Correia de Oliveira
''Gente de Aqui e de Agora''
» Amália Rodrigues/Vinicius de Moraes
Disco com o mesmo nome, diversos intérpretes
» António Calvário
"Vou ao Norte"
» Carlos Mendes
''Segunda Canção com Lágrimas'' (letra de Manuel Alegre)
''E alegre se fez triste''/''O Regresso''
» Carlos do Carmo
''Ferro Velho''
» Fausto
''África'', ''Ó Pastor que Choras'' e ''Chora, Amigo''
» Fernando Lopes Graça
''O Menino de sua Mãe'' (faixa)
» Fernando Tordo
''Viagens que passais'', ''Sangue nas Palavras'' e ''O Café'' (faixas)
» João Perry
''Textos Literários/Poesia de Eugénio de Andrade''
» José Afonso
''Menino do Bairro Negro''
''Os Vampiros''
''Ó Vila de Olhão''
''Cantigas de Maio''
''Venham Mais Cinco''
» José Barata Moura
''Subúrbio''
''Vamos Brincar à Caridadezinha''
» José Jorge Letria e Carlos Alberto Moniz
''Três Novas e Três Velhas''
José Jorge Letria de Viva Voz
» José Mário Branco
''Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades''
» Luís Cília
''Duas Melodias''
''Meu País''
» Manuel Freire
''Manuel Freire''
» Mário Viegas e Daniel Filipe
''A Invenção do Amor''
''Palavras Ditas''
Algumas coisas sobre censura que fui encontrando por essa net fora. Seguindo o raciocínio que alguns poderosos fazem hoje em dia, poder-se-á constatar que nada de mal aconteceu aos censurados (quando muito levaram uns ''safanões'') e que a Lei e a Ordem não foram perturbadas. As pessoas tinham de se mentalizar que seriam responsabilizadas pelas palavras e actos perigosos para quem carregava o fardo de conduzir a Nação.
Claro que tudo faz parte da História; a tradição censória em Portugal vem de longa data, pelo menos desde que D. João III, no ano de 1539, se lembrou de ''empossar'' um seu irmão mais novo, o cardeal D. Henrique, nas funções de inquisidor-geral do Tribunal do Santo Ofício.
É estranho como uma prática secular se extinguiu num piscar de olhos...
quarta-feira, 3 de novembro de 2004
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Clique em "Mensagens antigas" para ler mais artigos fantásticos do Arquivo.
Temas
(so)risos
(4)
100nada
(1)
25 de Abril
(5)
4º aniversário
(1)
90's
(2)
actualidade
(1)
Amália
(1)
Ambiente
(2)
Aniversários
(16)
Ano Novo
(6)
Arquitectura
(1)
Arte
(2)
Astronomia
(6)
avacalhando
(1)
Blogosfera
(78)
boicote AdC
(1)
borlas
(2)
burla
(1)
cantarolando
(1)
cidadania
(4)
Ciência
(6)
Cinema
(7)
Cinema de Animação
(2)
classe
(1)
coisas
(1)
coisas da vida
(5)
Como disse?
(1)
Computadores e Internet
(28)
Contra a censura
(1)
contrariado mas voltei
(1)
corrosões
(1)
cultura
(1)
curiosidades
(1)
dass
(1)
de férias; mas mesmo assim não se livram de mim
(2)
Década Nova
(1)
Democracia
(5)
depois fica tudo escandalizado com as notas dos exames de português
(1)
Desporto
(3)
Dia do Trabalhador
(1)
Direito ao trabalho
(1)
ditadores de Esquerda ou de Direita não deixam de ser ditadores
(1)
é que eu amanhã tenho de ir trabalhar
(1)
eco
(1)
Economia
(5)
efemérides
(3)
eles andam aí
(1)
Elis
(2)
Em bom português se entendem 8 nações
(2)
em homenagem ao 25 de Abril
(1)
Em Pequim o Espírito Olímpico morreu
(1)
escárnio e maldizer
(1)
Escultura
(3)
espanta tédio
(1)
estado do mundo
(1)
Fado
(2)
Fernando Pessoa
(1)
festividades
(3)
Festividades de Dezembro
(2)
Filosofia
(3)
Fotografia
(34)
fotojornalismo
(1)
fuck 24
(1)
fundamentalismos
(1)
futebol
(1)
Futuro hoje
(1)
ganância
(3)
gastronomia
(1)
Geografia
(1)
Grande Música
(46)
grátis
(1)
História
(7)
inCitações
(15)
injustiça
(1)
Internet
(4)
internet móvel
(1)
Internet: sítios de excelência
(1)
intervenção pública
(3)
inutilidades
(7)
Jazz
(2)
jornalismo
(1)
ladrões
(1)
Liberdade
(7)
liberdade de expressão
(2)
língua portuguesa
(4)
Lisboa
(3)
listas
(1)
Literatura
(13)
Livro do Desassossego
(1)
Má-língua
(1)
mentiras da treta
(1)
miséria
(1)
Modernismo
(2)
MPB
(5)
Mundo Cão
(5)
música afro-urbana
(1)
Música Popular Brasileira
(1)
Músicas
(15)
não te cales
(2)
Navegador Opera
(2)
ninguém me passa cartão...
(1)
Noite
(1)
Nossa língua
(1)
o lado negro
(1)
o nosso futuro
(1)
oportunismo
(1)
os fins nunca justificam os meios
(1)
Pandemias
(1)
paranoia
(1)
parvoíces
(1)
pessoal
(8)
Pintura
(169)
podem citar-me
(3)
Poesia
(31)
política
(10)
política internacional
(2)
porque são mesmo o melhor do mundo
(2)
Portugal
(3)
Portugal de Abril
(4)
preciosa privacidade
(6)
preguiça
(1)
Programas de navegação
(1)
quase nove séculos de crise
(3)
quotidiano
(2)
resistir
(2)
resmunguices
(7)
respeite sempre os direitos de autor
(1)
Seleção AdC - Internet
(1)
Selecção AdC - Internet
(2)
serviço público AdC
(1)
Sexo
(1)
so(r)risos
(5)
Solidariedade
(3)
Taxa Socas dos Bosques
(1)
Teatro
(1)
Tecnologia
(1)
televisão
(1)
temos de nos revoltar
(1)
Terceiro Mundo
(20)
The Fab Four
(1)
trauteando
(1)
Um aperto no coração
(1)
umbigo
(8)
UNICEF
(1)
vai tudo abaixo
(2)
vaidades
(7)
vampiros
(1)
Verdadeiramente Grandes Portugueses
(4)
vidas
(1)
vou ali e já venho
(1)
YouTube
(3)
Sem comentários:
Enviar um comentário
Comentários (só em português, Portuguese only)