As saudades que eu tenho desta Mulher. Cheguei a conhecê-la pessoalmente, era eu um miúdo que trabalhava num centro de cópias na zona de Santa Marta. Posso-vos garantir que se sentia toda a sua energia em qualquer lugar onde estivesse presente, mesmo quem não a conhecesse saberia imediatamente que estava perante uma mulher excepcional.
''CÂNTICO DO PAÍS EMERSO'' (1961)
Enquanto que no mar das Caraíbas
Os albatrozes os peixes voadores
Os sargaços a bússola a espuma
E a nossa Senhora dos Navegadores
Se punham ao serviço de uma
Nação acabada de nascer
Terra transportuguesa de longo curso
Onde os homens andam de tronco nu
E a barba produz ardor como a ortiga
Onde o instinto lê no voo das aves
Como uma sibila e o medo é abandonado
No país das sombras do urubu;
Terra onde as decisões têm a rapidez
Do leopardo e a fome desenha no ar
Uma hipérbole arquejante; terra onde
A fraternidade é rude como a flor do cardo
E os homens usam a alma como um instrumento cortante;
Terra onde por enquanto não há
Encontro às seis horas no bar
Nem estilo de vida novaiorquino
Nem razões para um homem se casar
Nem o fim de semana arrabaldino
Onde não há vivendas para alugar
Com cadeiras de verga sobre a relva;
Selva atónita ainda pela desfloração
O violento estupro dos machados
As panteras tensas da iniciação
O batuque dos seus sentidos alterados
Os tigres encolhidos da contracção uterina
Os gamos assustados dos seus peitos
As gazelas da sujeição à força masculina
E o elefante sossegado dos instintos satisfeitos...
Terra saudada ainda pelas
Estrelas do mar e outras estrelas
Meninas dos olhos dos marujos
Extasiados do avesso sempre
Que um português se fez ao mar
Não para descobrir a Índia
(Isso era o começo de um mundo
Com ondas por fecundar) mas
Para fazer um filho às vagas
Fêmeas de gosto salgado e de ancas
Largas. Mulheres que aderem à pele
Como a salsugem. As únicas
Que verdadeiramente se estorcem e rugem;
Enquanto que o Navio-Nação partia
Do Cais Anterior Cais Poesia
Rosa de místico continente
Aberta em tua geografia,
Fernando Pessoa, cais evanescente
Praça pública onde batia
O coração de toda a gente
Celtas fenícios árabes e godos
Romanos cartagineses gregos e todos
Que vieram passar aqui o Verão
E como o clima é excelente
Tomaram a britânica decisão
De passar o resto da velhice
Nesta praia do Ocidente
O que demonstra que a conspiração
Não foi em Caracas como se disse
Mas neste modo de ser florido
Que a velha Europa tem em Lisboa
E muito antes de ter nascido
O próprio poeta Fernando Pessoa
Que foi apenas o escriturário
A primeira ovelha exposta no calvário
De um povo agiota que faz pé-de-meia
O manga de alpaca que os deuses mandaram
Fazer a escrita da nova Odisseia
Que foi apenas a primeira vítima
De celtas fenícios árabes e godos
Romanos cartagineses gregos e todos
Os velhos piratas que se reformaram
E feitos cristãos, cristãos apagaram
Da sua memória a nódoa marítima.
Porque não era do cio da tormenta
Do vento macho do vento bárbaro do vento bruto
Da cerração a rondar como ave agoirenta
Da fome da malária do escorbuto, do hímen
Do velame rasgado pelos temporais,
Do aprumo dos mastros posto a ridículo
Pelos furacões, da ponte do comando
Entregue às rezas e às pragas, das máquinas
Movidas pelo combustível das maldições,
Da abordagem dos coriscos, do fato novo
Das escotilhas esfarrapado pelas vagas,
Da via sacra dos antigos riscos
Que os albatrozes o telégrafo e a agulha
Transmitiam sinais...
Desta vez havia turistas a bordo, turistas
Quase sempre cardíacos hepáticos às vezes;
Funcionários dos cruzeiros anuais que fazem
O périplo de África jogando bridge no salão;
Almas correctamente vestidas por alfaiates
Ingleses. Antípodas da virilidade
Demonstrada em actos de prestidigitação
(Meter no bolso um paquete de luxo e tirá-lo
Do peito transformado em Nação);
Desta vez havia os corvos civilizados
Do bloqueio. As gralhas metálicas dos linotipos
As câmaras dos deputados e as da televisão
A rádio o cabo submarino o veio
Do desencanto do tédio das tolices
Duma humanidade que tem por condenação
Descrer da moderna possibilidade do Ulisses;
Os campos magnéticos para a propagação
Do folhetim lamechas do paquete. O paquete
Donzela publicamente desonrada. A empresa
Proprietária viúva do paquete
A subscrição para os órfãos do paquete
O paquete o paquete o paquete
O paquete a troco das verdades omissas
As novenas as missas por alma do paquete
A coroa funerária dos sonhos adiados
Dos sonhos feriados por causa dessas missas...
Quanto ao resto
Tudo quanto é devidamente mecânico
A roda dos ventos a roda do sol a roda do leme
Tudo o que gera
gira
e geme
Tudo quanto é diabolicamente oceânico
Inferno disfarçado em navegação
Demónio vestido de marinheiro, tudo
O que vem buscar a alma do Capitão
Tudo quanto é marítimo por dentro
Intimamente humanamente submarino
O gosto a sal a humidade o cheiro tudo
Quanto é entrar na baía do sonho
Pela boca de um rio clandestino
O passeio do vento à noite nas cobertas
O percurso sonâmbulo das milhas
O olhar líquido cerúleo das vigias
Abertas, a ternura que ao longe têm por nós
As ilhas, a pessoa que amámos noutra vida
Encontrada no cais à hora da partida
E perdida depois à hora da chegada...
Tudo quanto é amor é despedida
E ter amigos do tombadilho da amurada...
Tudo quanto é marítimo por fora. Paisagens
Cuja imensidão é o pouco tempo que a gente
Nelas se demora. Tudo quanto é navio
À tona da água que nós somos, tudo
Quanto é alfândega e rótulo nas malas
Tudo quanto é viagem do vestido que pomos
Para comprar lembranças nos portos das escalas,
Tudo quanto é quente e suado como a pele dos fogueiros
Mercantil e anónimo como a alma das cargas
Cheio de fumo como os pulmões dos petroleiros
Asseado por fora como a brancura das fardas
Tudo quanto é sentimentos à mostra
Como os paquetes, casas vazias
Connosco lá dentro como os camarotes
Urgente como as passageiras
Que mostram as pernas aos grumetes
Ávido como os tripulantes
Que metem os olhos dentro dos decotes
Tudo quanto é inglês aprendido nas docas, tudo
Quanto é momentaneamente marítimo inglês
Que nunca sabe o nome da mulher que o beija. Tudo
Quanto é existência tirada à vista do freguês
E bebida rapidamente no balcão
Como a cerveja
Tudo o que em nós é atavicamente marítimo
Que tinge de sangue as areias
Que arremete em ginetes de espuma
Que vai morrer entre as ameias
De moventes castelos de bruma
Tudo o que estando parado avança
E fechado e às escuras é brisa
E é de si a mítica lembrança
Em terras que não vê e não pisa
Tudo o que tem íntima cordagem
Enxárcias cabos correias
Para o maquinismo das viagens
Dos ciclones que cortam as veias
Tudo o que é estrela achada
Pelo uso psíquico da balestilha
E que dos seus sonhos faz uma jangada
Os cerca de névoa e nasce uma ilha
Tudo o que fundeia no ancoradouro
Do subconsciente movediço
E que traz dessa ilha do tesouro
Feições do tempo em que se era embarcadiço
Tudo quanto é batalhas navais
O que em nós subsiste de remos e velas
Metafísicas Índias Ocidentais
Raças azuis em vez das amarelas
Tudo o que é naufrágio e deixa no mundo
Exilado em nós seu errante vulto
Tudo o que no cimo é barco e no fundo
É piloto afogado entre corais sepulto.
Tudo isto convertido amorosamente
Em pistoletes espadas adagas
Broquéis arcabuzes ventos de feição
Afeição das vergas das velas das vagas
Dos machos do leme da mastreação
Tudo isto marítimo comovidamente
Tudo isto ao serviço do Capitão.
Enquanto que subitamente todos os portos
Se enchiam de mulheres biologicamente
Convocadas pelo clarim de uma madrugada
Que faltava no mundo, uma madrugada
Espécie de púbis que faltava em seus corpos...
Enquanto que todos os cais se vestiam da gala
Fremente das indormidas sensações, galhardetes
Flâmulas pendões da síntese nervosa febril
Bariolada de vestidos cosidos cingidos
Para serem rasgados ventre baldios
Pedindo os arados ardentes da pirataria
E a semente dos cravos sangrentos das violações...
Mulheres que emigraram de si mesmas como andorinhas
Filtradas de sal genesíaco, glaciários,
Cristalizadas em formas incolores hialinas
Quando acabou a Primavera violenta dos corsários...
E eu de repente em todas elas achada
Fugida a todos os maridos Eu
Todas as filhas que envergonham os pais
Todas as rainhas de reinos introvertidos
Todas as prostitutas de sub-reptícios cais
Eu poliedro de todas elas
Coágulo de crisálidas pretas
Asiáticas ninfas amarelas
Europeias imaturamente brancas
Americanas larvadamente fulvas
Setembros de alma. Potencial tempo das uvas
Preferidas pelos Senhores do Barlavento.
Eu todas as noivas raptadas por corsários
Levada como uma faca entre os seus dentes lábio-
-laminada eu ponta de peitos eu gume de ventres
Mandados lançar vivos no mar Eu
Todos os olhos por eles arrancados enforcados
No lóbulo de suas orelhas pontas de verga
Para pôr o brinco dos enforcamentos Eu
Antro de saques de que os meus nervos andam faltos
Com pólvora munições e mantimentos
Em vez dos órgãos que a terra há-de comer
Lavrada pelas pilhagens pelos assaltos
Fertilizada pelo adubo dos arcabuzamentos
Eu dividida entre homens escuros da peleja
E os homens claros mas também morenos
Barbudos por dentro da tripulação
Dividida mas indivisamente deles
Hóstia de crimes em acto de comunhão...
Enquanto que do mar das Caraíbas
Minha Pátria um grito me chamava
Desdobrada em trombeta pelas brisas
Espiralado voo que enfunava
A plumagem de pássaros que fui
Nesse país de cor intervalar,
As avenidas as casas as pessoas
Desencorporam-me dos olhos que fruí
Num momento de glória constelar
E encontro-me entre gentes entre casas
Numa rua deserta como o choro solitário
De uma criança inorgamicamente com asas
Que o medo de nascer apunhalou num ovário;
O jardim infiltra-se de namorados ausentes.
Balsâmica insere-se na noite a flor da privação;
Só nos cafés estão corpóreos gordos sorridentes
Os amigos que a essa hora estão realmente na prisão.
Entre dentes os aa abertos clandestinos
Entre parêntesis o amor num quarto de aluguer
Entre parentes os sub-reptícios os caninos
Polícias que se disfarçam de malmequer.
Sobreviventes os lírios dissolvem-se num ar
Que de abutres e mortos é a acre mistura
Os poetas têm vontade de chorar
E fazem versos visados pela censura.
Os previdentes e os presidentes tomam de ponta
Os inocentes que têm pressa de voar
Os revoltados fazem de conta fazem de conta...
Os revoltantes fazem as contas de somar.
Embebo-me na solidão como uma esponja
Por becos que me conduzem a hospitais.
O medo é um tenente que faz a ronda
E a ronda abre sepulcros fecha portais;
Os edifícios são malefícios da conjura
Municipal de um desalento e de uma porta.
Salvo a ranhura para sair o funeral
Não há inquilinos nos edifícios vistos por fora.
Que é dos meninos com cataventos na aérea
Arquitectura de gargalhadas em cornucópia?
Almas bovinas acomodadas à matéria
Pastam na erva entre as ruínas da memória
Homens por dentro abandalhados em unhas sujas
Que deixaram seu coração num bengaleiro;
Mulheres corujas seriam gregas não fossem as negras
Nódoas deixadas na sua carne pelo dinheiro;
Jovens alheios à pulcritude do corpo em festa
Passam por mim como alamedas de ciprestes
E a flor de cinza da juventude é uma aresta
Que me golpeia abrindo vácuos de flores silvestres.
E essa ansiedade de mim mesma me virgula
Pausa de pátria entre-sonhada. É um crisol.
E o fruto agreste da linfa ardente que em mim circula
Sabe-me a sol. Sabe-me a pássaro. Pássaro ao sol.
Entre mim e a cidade se ateia a perspectiva
De uma angústia florida em narinas frementes.
Apalpo-me estou viva e o tacto subjectiva-
-me a galope num sonho como espuma nos dentes
E invoco-vos, irmãos, Capitães-Mores do Instinto!
Que me acenais do mar com um lenço cor da aurora
E com a tinta azulada desse aceno me pinto:
O cais é a urgência. O embarque é agora.
Invoco-vos, filho rosado que não tive
E que lucidamente elabora
Meu útero pátria emergente
Para nascer e ser saudável;
Amado meu que não foste a meu lado
Encoberto nuvem espectro
Ausência que sulcou o meu leito
Único mediúnico tecelão
Entrelaçando os fios inefáveis
De meus olhos minhas coxas meus cabelos
Minhas carícias país irrevogável
Onde o amor fornece o ar como um pulmão!
Invoco-te, irmão amigo amiga!
Pessoas dispersas da trindade
Que nunca foi pessoa verdadeira
E que fabricas solidária formiga
O tecto a mesa o sorriso a brasa
A rosa do calor de nós dois à lareira
E a vós também invoco, ó deuses
De religiões que alegram, as futuras!
Nossos senhores imanentes seminais
Germinação de criaturas
Com quem depois vos misturais
Para que no óvulo da mistura
Se forme a ave-maria a pura
Entre os mortais
E a vós, pássaros marinhos submarinos
Transatlânticos, oceânicos corcéis
Galos de xávega encristados de peixes
Brisas alísias pentes finos do Leste
Espigas de espuma searas de batéis
Angras de iates horizontes de velas
Almas penadas das antigas caravelas!
A vós, trémulo arco do zodíaco
Sonorizando o violino das viagens!
Invoco como uma planta nascitura
Convoca os forceps da aragem.
Levai novas de mim ao meu Amigo
Indómito cristal de cavaleiros
Que por pérolas de mim desalforjadas
Esta rosa inventada por soluços
Este líquen no peito, entram na justa.
Àquele que congraça e que conjuga
As marés da esperança esparsa e lassa
Ordenando-a em efígie em forma pura
Lá onde o sangue em flor se desenlaça
Levai-lhe meu coração penhor de núpcias
Como lenço que manda a prometida
Que em cheiro dá sinal da sua graça.
Podai minhas espáduas destas cruzes
Sáfaros de memória apodrecida
O que resta de mim em vento e pássaros
A lágrima que sou pejada de urzes
Entre os tojos da morte quer dar vida.
Não sou daqui. Mamei em peitos oceânicos
Minha mãe era ninfa meu pai chuva de lava
Mestiça de onda e de enxofres vulcânicos
Sou de mim mesma pomba húmida e brava
De mim mesma e de vós, ó Capitães trigueiros
Barbeados pelo sol penteados pela bruma!
Que extraístes do ar dessa coisa nenhuma
a génesis a pluma do meu país natal.
Não sou daqui das praias da tristeza
Do insone jardim dos glaciares
Levai minha nudez minha beleza
E colocai-a à sombra dos palmares.
Não sou daqui. A minha pátria não é esta
Bússola quebrada dos impulsos.
Sou rápida sou solta talvez nuvem
Nuvens minhas irmãs que me argolais os pulsos!
Tomai os meus cabelos Levai-os para a floresta
É lá que o meu amigo pastor de estrelas pasce
O marulho das folhas com pássaros nas vozes
O sol adormecido nos braços da giesta
A manhã rarefeita na corrida do alce
O luar orbitado no salto da gazela
Os animais velozes do sítio onde se nasce...
Levai-me, peixes da minha pele itinerante!
Quero ir à pesca colher no espelho da laguna
O lírio da nudez a perdida inocência
O coração do bosque a dar-se sem penumbra
Visto através da minha transparência.
Levai-me, ó minhas mãos branco exílio de ramos!
Meus dedos virtuais folhas de palma!
Sois os órgãos sensíveis da choupana
onde quero deitar a minha alma.
Levai-me, olhos meus impícitas montanhas
Florescência de cumes para poisarem águias!
Quero ter pensamentos que me cheirem a lenha
Esfregar o espírito em plantas aromáticas
Uma alma com plumas vaporosas cromáticas
Aberta como as pétalas de uma dança guerreira
Uma alma que seja verde que vá à caça
E dance nua para os deuses da fogueira...
Jogai, jogo do arco laço azul infância coisas
Que o desencanto confisca e abandona na cave!
Como uma criança joga um papagaio jogai
Este farrapo de ânsia poeira da cidade
Onde ninguém tem pressa de ser ave
E tu, anjo de pedra do meu grito! Anjo
Esculpido em pranto seco! Anjo enxuto!
Tu que me afogas o olhar no infinito
E as mãos no lodo dum gesto irresoluto
Tece, ó aranha de luz no esconso da garganta!
Coração de andorinha estrangulada!
O luar o jardim a cigarra que canta
O leito de verdura para eu me dar à esperança,
Rosa furtiva que aspiro numa escada.
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Natália Correia
in ''Natália Correia, Poemas a Rebate''.
Lisboa: D. Quixote, 1975.
Longo poema escrito em 1961, na época da campanha de Humberto Delgado, posteriormente publicado por Luiz Pacheco e de imediato censurado.
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