domingo, 17 de setembro de 2006

RECICLAGEM

SÍTIOS QUE NUNCA VI, TEMPOS QUE NUNCA VIVI - Buenos Aires
Texto originalmente publicado a 1 de Dezembro de 2003.


Avenida 9 de julio y el Obelisco. Fotografia de Eurico Zimbres


Teatro Colón.


Ástor Piazzolla, 1971. Fotografia de Pupeto Mastropasqua.

Uma das memórias mais vívidas que guardo foi ouvir Piazzolla ao vivo, fiquei tão hipnotizado que nem consegui aplaudir. Através daquela música lancinante, terna, feroz, lânguida, sensual, viajei até Buenos Aires, cidade que nunca vi.

Cidade de imigrantes, de culturas díspares que foram forjando uma identidade única e inconfundível. O tango é a expressão dessa maneira de ser, é a nova Terra Prometida, é a dignidade, é o amor insano, é a ''Semana Trágica'', é Gardel, é Perón, é Evita, é a agitação social, é a ''Guerra Sucia'', é a voz de ''Las Madres de la Plaza de Mayo'', é a promessa da democracia, é a corrupção dos políticos e a crise económica, é uma criança vítima da fome.

Piazzolla transformou radicalmente a face do tango. ''Para mim o tango foi sempre mais para o ouvido do que para os pés'' dizia, resumindo assim a sua aproximação a um estilo tradicionalmente dançado. Carlos Gardel, o outro grande nome da história deste género musical, conhece o jovem Ástor em Nova York (onde este vivia desde os três anos) e impressionado com o seu talento contrata-o para tocar no filme ''El Dia Que Me Quieras''.
Regressa a Buenos Aires em 1937 onde vai tocando em vários agrupamentos enquanto estuda música clássica com Alberto Ginastera. Escreve várias composições sinfónicas, uma das quais lhe ganha uma bolsa para estudar em Paris com Nadia Boulanger. A grande professora, perante as suas hesitações e ambivalências, encoraja-o a reencontrar as suas raízes, o tango e o bandoneon.

Era a voz que muitos não queriam ouvir, ''estava a tirar-lhes o tango, o seu velho tango''. A fúria era tão grande que um dia, enquanto dava uma entrevista na rádio, um cantor irrompeu estúdio adentro apontando uma pistola à cabeça de Piazzolla.
Em 1955, depois de regressar à bela capital argentina, formou um octeto radical que incluía uma viola eléctrica. Levaram o tango para os domínios da música de câmara sem cantor ou dançarinos. Os media e as editoras discográficas fizeram a vida negra ao grupo que duraria apenas três anos, todavia Piazzolla fizera um corte decisivo com a tradição.
Volta a Nova York onde experimenta a fusão do jazz e do tango sem muito sucesso. De regresso a casa em 1960 forma vários quintetos e inicia o seu período mais produtivo escrevendo então muitas das suas peças clássicas tais como a triologia ''Angel''. Tendo experimentado vários formatos foi, porém, a combinação de bandeneon, contrabaixo, violino, piano e viola eléctrica, que veio a ser a sua favorita. Outros agrupamentos que estimava incluíram os seus sextetos e o mais radical e efémero ''Conjunto9'' que ficou famoso pela versão de ''Buenos Aires Hora Cero'' de 1983; esta peça (muitas vezes gravada) evoca essas noites em que ele e os seus colegas faziam uma pausa vagueando pelas ruas desertas antes de retomarem os ensaios que se estendiam até às quatro ou cinco da manhã.
Uma das mais conhecidas peças é, sem dúvida, o Libertango; Piazzolla escreveu-a para o seu segundo quinteto, o mais universalmente aclamado entre 1978 e 1988. Pouco depois da dissolução do quinteto sofre um forte ataque que o leva à morte em 4 de Julho de 1992.

A sua obra será sempre um testemunho de um homem que nunca cedeu à facilidade e que soube elevar o tango à categoria de música universal.

Excertos de Buenos Aires Hora Cero (parte final) e Adiós Nonino.

Ligações:
Piazzolla.Org
Piazzolla on Answers.com
Piazzolla on Answers.com (All Music Guide)
Todo tango: Piazzolla
Piazzolla, Wikipédia em Português

PS: Espero que os leitores me perdoem por servir um texto "requentado".

Arquivado em: "Músicas"

Sem comentários:

Enviar um comentário

Comentários (só em português, Portuguese only)

Clique em "Mensagens antigas" para ler mais artigos fantásticos do Arquivo.

Temas

(so)risos (4) 100nada (1) 25 de Abril (5) 4º aniversário (1) 90's (2) actualidade (1) Amália (1) Ambiente (2) Aniversários (16) Ano Novo (6) Arquitectura (1) Arte (2) Astronomia (6) avacalhando (1) Blogosfera (78) boicote AdC (1) borlas (2) burla (1) cantarolando (1) cidadania (4) Ciência (6) Cinema (7) Cinema de Animação (2) classe (1) coisas (1) coisas da vida (5) Como disse? (1) Computadores e Internet (28) Contra a censura (1) contrariado mas voltei (1) corrosões (1) cultura (1) curiosidades (1) dass (1) de férias; mas mesmo assim não se livram de mim (2) Década Nova (1) Democracia (5) depois fica tudo escandalizado com as notas dos exames de português (1) Desporto (3) Dia do Trabalhador (1) Direito ao trabalho (1) ditadores de Esquerda ou de Direita não deixam de ser ditadores (1) é que eu amanhã tenho de ir trabalhar (1) eco (1) Economia (5) efemérides (3) eles andam aí (1) Elis (2) Em bom português se entendem 8 nações (2) em homenagem ao 25 de Abril (1) Em Pequim o Espírito Olímpico morreu (1) escárnio e maldizer (1) Escultura (3) espanta tédio (1) estado do mundo (1) Fado (2) Fernando Pessoa (1) festividades (3) Festividades de Dezembro (2) Filosofia (3) Fotografia (34) fotojornalismo (1) fuck 24 (1) fundamentalismos (1) futebol (1) Futuro hoje (1) ganância (3) gastronomia (1) Geografia (1) Grande Música (46) grátis (1) História (7) inCitações (15) injustiça (1) Internet (4) internet móvel (1) Internet: sítios de excelência (1) intervenção pública (3) inutilidades (7) Jazz (2) jornalismo (1) ladrões (1) Liberdade (7) liberdade de expressão (2) língua portuguesa (4) Lisboa (3) listas (1) Literatura (13) Livro do Desassossego (1) Má-língua (1) mentiras da treta (1) miséria (1) Modernismo (2) MPB (5) Mundo Cão (5) música afro-urbana (1) Música Popular Brasileira (1) Músicas (15) não te cales (2) Navegador Opera (2) ninguém me passa cartão... (1) Noite (1) Nossa língua (1) o lado negro (1) o nosso futuro (1) oportunismo (1) os fins nunca justificam os meios (1) Pandemias (1) paranoia (1) parvoíces (1) pessoal (8) Pintura (169) podem citar-me (3) Poesia (31) política (10) política internacional (2) porque são mesmo o melhor do mundo (2) Portugal (3) Portugal de Abril (4) preciosa privacidade (6) preguiça (1) Programas de navegação (1) quase nove séculos de crise (3) quotidiano (2) resistir (2) resmunguices (7) respeite sempre os direitos de autor (1) Seleção AdC - Internet (1) Selecção AdC - Internet (2) serviço público AdC (1) Sexo (1) so(r)risos (5) Solidariedade (3) Taxa Socas dos Bosques (1) Teatro (1) Tecnologia (1) televisão (1) temos de nos revoltar (1) Terceiro Mundo (20) The Fab Four (1) trauteando (1) Um aperto no coração (1) umbigo (8) UNICEF (1) vai tudo abaixo (2) vaidades (7) vampiros (1) Verdadeiramente Grandes Portugueses (4) vidas (1) vou ali e já venho (1) YouTube (3)