Setenta e quatro cidadãos vêm-nos recordar que Abril não pode morrer.
Somos cidadãos e cidadãs nascidos depois do 25 de Abril de 1974. Crescemos com a consciência de que as conquistas democráticas e os mais básicos direitos de cidadania são filhos directos desse momento histórico. Soubemos resistir ao derrotismo cínico, mesmo quando os factos pareciam querer lutar contra nós: quando o então primeiro-ministro Cavaco Silva recusava uma pensão ao capitão de Abril, Salgueiro Maia, e a concedia a torturadores da PIDE/DGS; quando um governo decidia comemorar Abril como uma «evolução», colocando o «R» no caixote de lixo da História; quando víamos figuras políticas e militares tomar a revolução do 25 de Abril como um património seu. Soubemos permanecer alinhados com a sabedoria da esperança, porque sem ela a democracia não tem alma nem futuro.
O momento crítico que o país atravessa tem vindo a ser aproveitado para promover uma erosão preocupante da herança material e simbólica construída em torno do 25 de Abril. Não o afirmamos por saudosismo bacoco ou por populismo de circunstância. Se não é de agora o ataque a algumas conquistas que fizeram de nós um país mais justo, mais livre e menos desigual, a ofensiva que se prepara – com a cobertura do Fundo Monetário Internacional e a acção diligente do «grande centro» ideológico – pode significar um retrocesso sério, inédito e porventura irreversível. Entendemos, por isso, que é altura de erguermos a nossa voz. Amanhã pode ser tarde.
O primeiro eixo dessa ofensiva ocorre no campo do trabalho. A regressão dos direitos laborais tem caminhado a par com uma crescente precarização que invade todos os planos da vida: o emprego e o rendimento são incertos, tal como incerto se torna o local onde se reside, a possibilidade de constituir família, o futuro profissional. Como o sabem todos aqueles e aquelas que experienciam esta situação, a precariedade não rima com liberdade. Esta só existe se estiverem garantidas perspectivas mínimas de segurança laboral, um rendimento adequado, habitação condigna e a possibilidade de se acederem a dispositivos culturais e educativos. O desemprego, os falsos recibos verdes, o uso continuado e abusivo de contratos a prazo e as empresas de trabalho temporário são hoje as faces deste tempo em que o trabalho sem direitos se tornou a norma. Recentes declarações de agentes políticos e económicos já mostraram que a redução dos direitos e a retracção salarial é a rota pretendida. Em sentido inverso, estamos dispostos a lutar por um novo pacto social que trave este regresso a vínculos laborais típicos do século XIX.
O segundo eixo dessa ofensiva centra-se no enfraquecimento e desmantelamento do Estado social. A saúde e a educação são as duas grandes fatias do bolo público que o apetite privado busca capturar. Infelizmente, algum caminho já foi trilhado, ainda que na penumbra. Sabemos que não há igualdade de oportunidades sem uma rede pública estruturada e acessível de saúde e educação. Estamos convencidos de que não há democracia sem igualdade de oportunidades. Preocupa-nos, por isso, o desinvestimento no SNS, a inexistência de uma rede de creches acessível, os problemas que enfrenta a escola pública e as desistências de frequência do ensino superior por motivos económicos. Num país com fortes bolsas de pobreza e com endémicas desigualdades, corroer direitos sociais constitucionalmente consagrados é perverter a nossa coluna vertebral democrática, e o caldo perfeito para o populismo xenófobo. Com isso, não podemos pactuar. No nosso ponto de vista, esta é a linha de fronteira que separa uma sociedade preocupada com o equilíbrio e a justiça e uma sociedade baseada numa diferença substantiva entre as elites e a restante população.
Por fim, o terceiro e mais inquietante eixo desta ofensiva anti-Abril assenta na imposição de uma ideia de inevitabilidade que transforma a política mais numa ratificação de escolhas já feitas do que numa disputa real em torno de projectos diferenciados. Este discurso ganhou terreno nos últimos tempos, acentuou-se bastante nas últimas semanas e tenderá a piorar com a transformação do país num protectorado do FMI. Um novo vocabulário instala-se, transformando em «credores» aqueles que lucram com a dívida, em «resgate financeiro» a imposição ainda mais acentuada de políticas de austeridade e em «consenso alargado» a vontade de ditar a priori as soluções governativas. Esta maquilhagem da língua ocupa de tal forma o terreno mediático que a própria capacidade de pensar e enunciar alternativas se encontra ofuscada. Por isso dizemos: queremos contribuir para melhorar o país, mas recusamos ser parte de uma engrenagem de destruição de direitos e de erosão da esperança. Se nos roubarem Abril, dar-vos-emos Maio!
Os 74 de 74 Signatários:
Alexandre de Sousa Carvalho – Relações Internacionais, investigador
Alexandre Isaac – antropólogo, dirigente associativo
Alfredo Campos – sociólogo, bolseiro de investigação
Ana Fernandes Ngom – animadora sociocultural
André Avelãs – artista
André Rosado Janeco – bolseiro de doutoramento
António Cambreiro – estudante
Artur Moniz Carreiro – desempregado
Bruno Cabral – realizador; Bruno Rocha – administrativo
Bruno Sena Martins – antropólogo
Carla Silva – médica, sindicalista
Catarina F. Rocha – estudante
Catarina Fernandes – animadora sociocultural, estagiária
Catarina Guerreiro – estudante
Catarina Lobo – estudante
Celina da Piedade – música
Chullage - sociólogo, músico
Cláudia Diogo – livreira
Cláudia Fernandes – desempregada
Cristina Andrade – psicóloga
Daniel Sousa – guitarrista, professor
Duarte Nuno - analista de sistemas
Ester Cortegano – tradutora
Fernando Ramalho – músico
Francisca Bagulho – produtora cultural
Francisco Costa – linguista
Gui Castro Felga – arquitecta
Helena Romão – música, musicóloga
Joana Albuquerque – estudante
Joana Ferreira – lojista
João Labrincha – Relações Internacionais, desempregado
Joana Manuel – actriz
João Pacheco – jornalista
João Ricardo Vasconcelos – politólogo, gestor de projectos
João Rodrigues – economista
José Luís Peixoto – escritor
José Neves – historiador, professor universitário
José Reis Santos – historiador
Lídia Fernandes – desempregada
Lúcia Marques – curadora, crítica de arte
Luís Bernardo – estudante de doutoramento
Maria Veloso – técnica administrativa
Mariana Avelãs – tradutora
Mariana Canotilho – assistente universitária
Mariana Vieira – estudante de doutoramento
Marta Lança – jornalista, editora
Marta Rebelo – jurista, assistente universitária
Miguel Cardina – historiador
Miguel Simplício David – engenheiro civil
Nuno Duarte (Jel) – artista
Nuno Leal – estudante
Nuno Teles – economista
Paula Carvalho – aprendiz de costureira
Paula Gil – Relações Internacionais, estagiária
Pedro Miguel Santos – jornalista
Ricardo Araújo Pereira – humorista
Ricardo Lopes Lindim Ramos – engenheiro civil
Ricardo Noronha – historiador
Ricardo Sequeiros Coelho – bolseiro de investigação
Rita Correia – artesã
Rita Silva – animadora
Salomé Coelho – investigadora em Estudos Feministas, dirigente associativa
Sara Figueiredo Costa – jornalista
Sara Vidal – música
Sérgio Castro – engenheiro informático
Sérgio Pereira – militar
Tiago Augusto Baptista – médico, sindicalista
Tiago Brandão Rodrigues – bioquímico
Tiago Gillot – engenheiro agrónomo, encarregado de armazém
Tiago Ivo Cruz – programador cultural
Tiago Mota Saraiva – arquitecto
Tiago Ribeiro – sociólogo
Úrsula Martins – estudante
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