sábado, 15 de dezembro de 2012

MENSAGEM DE NATAL DE SUA EXCELÊNCIA O PROVEDOR DO LEITOR DO "ABAIXO DE CÃO"

Caros leitores, portugueses, europeus, terráqueos; dirijo-me a vós na qualidade de Provedor do Leitor propondo uma reflexão sobre os tempos que correm.

Nesta mágica altura do ano ficamos sempre comovidos com os gestos de ajuda dirigidos aos pobrezinhos, sabemos que no dia 24 todos os sem-abrigo terão direito a um jantar quente com bacalhau e bolo-rei, que os peditórios à porta do supermercado ajudarão muitos desgraçadinhos a terem um Natal de barriguinha cheia. Claro está que no resto do ano os responsáveis políticos, e todos nós, não se preocuparão muito com tal peso morto. Devo porém alertar que alguns dos que leem estas palavras poderão em 2013 estar à mesa da tal Ceia Caridosa.

Assim funciona uma comunidade liberalizada: o Estado Social dá lugar à Sociedade Caritativa. Com vigor e determinação o nosso Governo e a Troica entregam o que é de todos a restritos interesses particulares. Há poucos dias dirigi-me a um tribunal onde a segurança era assegurada por uma empresa privada, sempre que passo por um Mini Preço ou Pingo Doce vejo lá agentes da PSP ou GNR.

Passos Coelho, Cavaco e sua clique tudo fazem para construir a sociedade sonhada por Milton Friedman e Pinochet. O aluno que desmaia com fome na escola, a farmácia com falta de medicamentos, o aumento exponencial do consumo de papas pelos adultos, tudo isso são danos colaterais inevitáveis. Nas suas mentes estamos a caminho do Ultraliberalismo, nunca vivemos a utopia, mas o Estado Novo teve todas as condições para a alcançar. Tanto assim é que se volta aqui a citar, desta vez na íntegra, o artigo de Isabel do Carmo publicado a 27 de Setembro de 2011 no Público:

Já vivi nesse país e não gostei

O primeiro-ministro anunciou que íamos empobrecer, com aquele desígnio de falar ''verdade'', que consiste na banalização do mal, para que nos resignemos mais suavemente. Ao lado, uma espécie de contabilista a nível nacional diz-nos, como é hábito nos contabilistas, que as contas são difíceis de perceber, mas que os números são crus. Os agiotas batem à porta e eles afinal até são amigos dos agiotas. Que não tivéssemos caído na asneira de empenhar os brincos, os anéis e as pulseiras para comprar a máquina de lavar alemã. E agora as joias não valem nada. Mas o vendedor prometeu-nos que… Não interessa.

Vamos empobrecer. Já vivi num país assim. Um país onde os ''remediados'' só compravam fruta para as crianças e os pomares estavam rodeados de muros encimados por vidros de garrafa partidos, onde as crianças mais pobres se espetavam, se tentassem ir às árvores. Um país onde se ia ao talho comprar um bife que se pedia “mais tenrinho” para os mais pequenos, onde convinha que o peixe não cheirasse “a fénico”. Não, não era a “alimentação mediterrânica”, nos meios industriais e no interior isolado, era a sobrevivência.

Na terra onde nasci, os operários corticeiros, quando adoeciam ou deixavam de trabalhar vinham para a rua pedir esmola (como é que vão fazer agora os desempregados de ''longa'' duração, ou seja, ao fim de um ano e meio?). Nessa mesma terra deambulavam também pela rua os operários e operárias que o sempre branqueado Alfredo da Silva e seus descendentes punham na rua nos ''balões'' (''Olha, hoje houve um 'balão' na CUF, coitados!''). Nesse país, os pobres espreitavam pelos portões da quinta dos Patiño e de outros, para ver ''como é que elas iam vestidas''.

Nesse país morriam muitos recém-nascidos e muitas mães durante o parto e após o parto. Mas havia a ''obra das Mães'' e fazia-se anualmente ''o berço'' nos liceus femininos onde se colocavam camisinhas, casaquinhos e demais enxoval, com laçarotes, tules e rendas e o mais premiado e os outros eram entregues a famílias pobres bem- comportadas (o que incluía, é óbvio, casamento pela Igreja).

Na terra onde nasci e vivi, o hospital estava entregue à Misericórdia. Nesse, como em todos os das Misericórdias, o provedor decidia em absoluto os desígnios do hospital. Era um senhor rural e arcaico, vestido de samarra, evidentemente não médico, que escolhia no catálogo os aparelhos de fisioterapia, contratava as religiosas e os médicos, atendia os pedidos dos administrativos (''Ó senhor provedor, preciso de comprar sapatos para o meu filho''). As pessoas iam à "Caixa", que dependia do regime de trabalho (ainda hoje quase 40 anos depois muitos pensam que é assim), iam aos hospitais e pagavam de acordo com o escalão. E tudo dependia da Assistência. O nome diz tudo. Andavam desdentadas, os abcessos dentários transformavam-se em grandes massas destinadas a operação e a serem focos de septicemia, as listas de cirurgia eram arbitrárias. As enfermarias dos hospitais estavam cheias de doentes com cirroses provocadas por muito vinho e pouca proteína. E generalizadamente o vinho era barato e uma ''boa zurrapa''.

E todos por todo o lado pediam ''um jeitinho'', ''um empenhozinho'', ''um padrinho'', ''depois dou-lhe qualquer coisinha'', ''olhe que no Natal não me esqueço de si'' e procuravam ''conhecer lá alguém''.

Na província, alguns, poucos, tinham acesso às primeiras letras (e últimas) através de regentes escolares, que elas próprias só tinham a quarta classe. Também na província não havia livrarias (abençoadas bibliotecas itinerantes da Gulbenkian), nem teatro, nem cinema.

Aos meninos e meninas dos poucos liceus (aquilo é que eram elites!) era recomendado não se darem com os das escolas técnicas. E a uma rapariga do liceu caía muito mal namorar alguém dessa outra casta. Para tratar uma mulher havia um léxico hierárquico: você, ó; tiazinha; senhora (Maria); dona; senhora dona e… supremo desígnio – Madame.

Os funcionários públicos eram tratados depreciativamente por "mangas-de-alpaca" porque usavam duas meias mangas com elásticos no punho e no cotovelo a proteger as mangas do casaco.

Eu vivi nesse país e não gostei. E com tudo isto, só falei de pobreza, não falei de ditadura. É que uma casa bem com a outra. A pobreza generalizada e prolongada necessita de ditadura. Seja em África, seja na América Latina dos anos 60 e 70 do século XX, seja na China, seja na Birmânia, seja em Portugal.

Desejo a todos que as próximas 52 semanas sejam plenas de solidariedade. Entretanto mandem bardamerda quem vos impinge a caridadezinha dizendo-vos que têm que saber empobrecer.

Camargo V. Neno

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