terça-feira, 13 de janeiro de 2004

DESASSOSSEGO III

"Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior."

"O coração, se pudesse pensar, pararia.
Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.
Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também."

"Tinha-me levantado cedo e tardava em preparar-me para existir.
Era a ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma ânsia desconhecida, um desejo sem definição, nem até reles. Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo. E quanto me debrucei da janela altíssima, sobre a rua para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamentamente."

in ''O Livro do Desassossego'' de Bernardo Soares [Fernando Pessoa]
Clique em "Mensagens antigas" para ler mais artigos fantásticos do Arquivo.

Temas

(so)risos (4) 100nada (1) 25 de Abril (5) 4º aniversário (1) 90's (2) actualidade (1) Amália (1) Ambiente (2) Aniversários (16) Ano Novo (6) Arquitectura (1) Arte (2) Astronomia (6) avacalhando (1) Blogosfera (78) boicote AdC (1) borlas (2) burla (1) cantarolando (1) cidadania (4) Ciência (6) Cinema (7) Cinema de Animação (2) classe (1) coisas (1) coisas da vida (5) Como disse? (1) Computadores e Internet (28) Contra a censura (1) contrariado mas voltei (1) corrosões (1) cultura (1) curiosidades (1) dass (1) de férias; mas mesmo assim não se livram de mim (2) Década Nova (1) Democracia (5) depois fica tudo escandalizado com as notas dos exames de português (1) Desporto (3) Dia do Trabalhador (1) Direito ao trabalho (1) ditadores de Esquerda ou de Direita não deixam de ser ditadores (1) é que eu amanhã tenho de ir trabalhar (1) eco (1) Economia (5) efemérides (3) eles andam aí (1) Elis (2) Em bom português se entendem 8 nações (2) em homenagem ao 25 de Abril (1) Em Pequim o Espírito Olímpico morreu (1) escárnio e maldizer (1) Escultura (3) espanta tédio (1) estado do mundo (1) Fado (2) Fernando Pessoa (1) festividades (3) Festividades de Dezembro (2) Filosofia (3) Fotografia (34) fotojornalismo (1) fuck 24 (1) fundamentalismos (1) futebol (1) Futuro hoje (1) ganância (3) gastronomia (1) Geografia (1) Grande Música (46) grátis (1) História (7) inCitações (15) injustiça (1) Internet (4) internet móvel (1) Internet: sítios de excelência (1) intervenção pública (3) inutilidades (7) Jazz (2) jornalismo (1) ladrões (1) Liberdade (7) liberdade de expressão (2) língua portuguesa (4) Lisboa (3) listas (1) Literatura (13) Livro do Desassossego (1) Má-língua (1) mentiras da treta (1) miséria (1) Modernismo (2) MPB (5) Mundo Cão (5) música afro-urbana (1) Música Popular Brasileira (1) Músicas (15) não te cales (2) Navegador Opera (2) ninguém me passa cartão... (1) Noite (1) Nossa língua (1) o lado negro (1) o nosso futuro (1) oportunismo (1) os fins nunca justificam os meios (1) Pandemias (1) paranoia (1) parvoíces (1) pessoal (8) Pintura (169) podem citar-me (3) Poesia (31) política (10) política internacional (2) porque são mesmo o melhor do mundo (2) Portugal (3) Portugal de Abril (4) preciosa privacidade (6) preguiça (1) Programas de navegação (1) quase nove séculos de crise (3) quotidiano (2) resistir (2) resmunguices (7) respeite sempre os direitos de autor (1) Seleção AdC - Internet (1) Selecção AdC - Internet (2) serviço público AdC (1) Sexo (1) so(r)risos (5) Solidariedade (3) Taxa Socas dos Bosques (1) Teatro (1) Tecnologia (1) televisão (1) temos de nos revoltar (1) Terceiro Mundo (20) The Fab Four (1) trauteando (1) Um aperto no coração (1) umbigo (8) UNICEF (1) vai tudo abaixo (2) vaidades (7) vampiros (1) Verdadeiramente Grandes Portugueses (4) vidas (1) vou ali e já venho (1) YouTube (3)